Para o badalado chef argentino Federico Fialayre, do premiado restaurante Tomo I, de Buenos Aires, há muita incerteza sobre os novos caminhos da Gastronomia no mundo.
A gastronomia argentina sempre foi referência de qualidade e sabor. No Traveller´s Choice 2020, a capital Buenos Aires conseguiu emplacar 14 restaurantes entre os 50 melhores da América Latina. A explicação para isso pode ser a relação próxima entre os novos chefs que comandam os restaurantes portenhos e as tradicionais cozinhas das mães e avós, onde eles foram criados.
Badalados chefs, como Federico Fialayre, que comanda o premiadíssimo Tomo I, conhecem bem essa realidade. Ele cresceu brincando entre as panelas da mãe, Ada Concaro, e completa 50 anos de vida e muito sucesso, junto com o restaurante que sua mãe transformou em referência de qualidade em Buenos Aires. A fórmula do sucesso ele não revela, mas acredita que a releitura de pratos tradicionais da culinária argentina cria uma ligação dos clientes com o melhor da gastronomia tradicional, mas com um frescor dos novos tempos.
Em Buenos Aires a atividade gastronômica limitava-se ao sistema delivery desde que a quarentena foi regulamentada, em março de 2020, até há um mês, quando apenas as mesas eram habilitadas na rua e nos espaços exteriores. Ainda hoje os restaurantes estão proibidos de usar seus salões e é impossível saber quando o regulamento vai mudar, assim como é impossível especular com a data em que a vacina estará disponível ou os números de infecção comecem a diminuir.
ALIMENTO & AÇÃO – O Tomo I sempre foi considerado um restaurante que permite uma gastronomia afetiva, que lembra a tradição das cozinhas de mães e avós. Desde que você assumiu o restaurante ele mudou de patamar, fazendo uma releitura dessa gastronomia clássica. Como você classifica hoje a culinária do Tomo I?
Chef Federico Fialayre – Acredito que a gastronomia se polarizou nos últimos anos, e que percorreu caminhos diversos, tantos que poderíamos falar de gastronomia no plural. Felizmente, cozinhar é um campo tão amplo quanto a própria vida, e existem dezenas de maneiras de fazê-lo, e acredito que muitas (a grande maioria, na verdade) são válidas. Construí todo o meu trabalho a partir de uma premissa básica que é o prazer sensorial. Um ponto de partida brutalmente hedonista. Nada importa para mim, nem me importei mais do que isso. Parece banal: todos trabalhamos pelo prazer de sabores e texturas, porém não sei se todos o temos como nosso horizonte e ponto de fuga. Vou dar exemplos concretos: para muitas pessoas a cozinha (além de rica) precisa ser original e inovadora; para outros, a cozinha deve refletir (por meio de produtos ou técnicas) a cultura de um lugar; para outros, tem a função de nutrir de forma saudável … Todas são opiniões absolutamente válidas e louváveis, mas nem a originalidade nem a origem dos produtos têm um valor organoléptico ou sensual por si. Assim, quando comecei a dirigir a cozinha de Tomo, decidi parar de trabalhar por inovação ou tradição e tentei fazer com que ambas as coisas se tornassem minhas ferramentas. Uma espécie de reviravolta copernicana, se preferir. E era lá que ficava a cozinha de Tomo quando o Corona chegou.
ALIMENTO & AÇÃO – Sua mãe e sua tia foram as fundadoras do restaurante, onde você cresceu e pegou gosto pela Gastronomia. Quais as suas memórias desse tempo e como isso estruturou a tua formação acadêmica e emocional?
Chef Federico Fialayre – Eu nunca soube para que estava treinando, para falar a verdade. O que vi me fascinou, mas tudo o que vi me pareceu natural. Borges observou que no Alcorão não há camelos simplesmente porque os camelos são perfeitamente naturalizados nos países árabes: bem, no meu caso, cozinhar foi perfeitamente naturalizado no meu treinamento. Mas não estou falando da minha formação acadêmica (que, aliás, aconteceu em um campo muito diferente da gastronomia), mas da minha própria infância. Vi as pessoas ficarem entusiasmadas com os pratos que minha mãe fazia, e senti que naquele ato de cozinhar / comer algo muito forte foi produzido. Ele não conseguia contornar isso. Acho que isso me marcou para sempre.
ALIMENTO & AÇÃO – Buenos Aires tem 14 restaurantes entre os 50 melhores da América Latina. Isso mostra a força da Gastronomia porteña. Como o segmento de restaurantes recebeu o impacto da Covid-19? No Brasil, muitos restaurantes fecharam. Outros conseguiram manter-se muito mal com o sistema delivery.
Chef Federico Fialayre – Sem a menor ideia de quando esse assunto vai acabar, ou seja, sem saber ainda hoje a real magnitude desse fenômeno, uma resposta sobre as consequências desse fenômeno seria totalmente infundada. Acredito que mesmo as variáveis mais elementares que permitiriam um cálculo sério não são limitadas e não gosto de fazer especulações infundadas, menos ainda publicamente.
ALIMENTO & AÇÃO – Na tua visão, o que mudou com essa pandemia? Quais serão os desafios dos restaurantes para a retomada da confiança dos clientes e a volta ao salão?
Chef Federico Fialayre – Todo mundo fala sobre isso, mas, como falei recentemente, ainda há muitas variáveis a serem definidas para prever o fim desse filme. Acho que as consequências seriam muito diferentes se deixássemos isso em março de 2021 do que se o fizéssemos um ano depois (embora se presuma que a vacina não demorará a chegar, ainda não sabemos quando terminará a distribuição em nossos países). Assim como seria diferente sair graças a uma vacina, sair graças a uma redução drástica nas taxas de necessidade de terapia intensiva e morbidade. Dito isso, acho que aconteça o que acontecer, a gastronomia mais cedo ou mais tarde encontrará a sua razão de estar nesta sociedade. Acho que a distribuição dos tempos na vida moderna exige isso. E além das condições (segurança, por exemplo) não há melhor incentivo para uma atividade do que a demanda de uma sociedade. Até o surgimento da pandemia, a gastronomia prestava à sociedade um serviço de que as pessoas precisavam. Acredito que essas mesmas pessoas vão precisar de uma nova resposta da gastronomia para reconstruir suas vidas normalmente, assim como vão precisar para reformular suas normalidades quando isso acontecer. Os novos formatos de entrega, as técnicas de conservação e regeneração de pratos (vazios, congelados), a reformulação dos conceitos gastronômicos em busca da redução dos custos, creio, são algumas das respostas técnico-gastronômicas ao problema da pandemia.
ALIMENTO & AÇÃO – Em termos gastronômicos, o que esperar da Gastronomia portenha nos próximos anos?
Chef Federico Fialayre – Acho que o que vai acontecer com a gastronomia de Buenos Aires não vai ser muito diferente do que vai acontecer com a cidade e o país. Além de nossos gostos e desejos, é claro que o mundo está enfrentando uma crise muito séria e que minha cidade, assim como meu país, adicionam seu próprio carma à crise global. Mas, precisamente por isso, penso que o que está em jogo aqui é a adaptabilidade de cada um de nós, e a imaginação para nos reinventarmos. Nós, argentinos, acreditamos que somos muito bons nisso. Oxalá seja assim.