Existem muitos tabus no mundo dos alimentos, sendo que o maior deles, na minha opinião, é uma “verdade absoluta” no inconsciente popular de que tudo que é industrializado é ruim porque tem “química”, e de que tudo que é caseiro é bom porque é natural. Como químico e profissional da indústria alimentícia atuando há mais de 25 anos, sou portanto, apontado como vilão nesta interpretação popular, como se o papel de profissionais como eu fosse o de “piorar os alimentos” para fazer mal aos consumidores, quando na verdade queremos mantê-los nutritivos, garantindo-lhes a devida shelf-life durante toda cadeia logística de distribuição, e acima de tudo, que estejam livres de contaminação, justamente para que não causem nenhum dano à saúde de quem os consome. Com isso, o objetivo é garantir alimentos viáveis a uma população beirando 8 bilhões de pessoas. Gosto sempre de lembrar que a expectativa de vida das populações vem aumentando consistentemente nos últimos anos, e entre diversos motivos, um deles é uma alimentação mais adequada e segura.
Há muita invencionice e as redes sociais ajudam a disseminar bobagens, por exemplo: determinados alimentos num dia são nutritivos e no outro causam câncer; alimentos surgem como milagrosos para a saúde num dia e como perigosíssimos no outro; tudo sem lastro científico, ou com lastro frágil proveniente da perspectiva de “especialistas”. Toda produção de alimentos envolve riscos, tudo tem dois lados e a diferença entre o remédio e o veneno é a dosagem. Por isso, neste artigo apenas conto “causos de família”, sem pretensão nenhuma de esclarecer o tema alimentos artesanais, de trazer verdades incontestáveis ou de dirimir dúvidas. Na verdade, quero apenas dividir um olhar crítico com o leitor, e ao final, provavelmente, trazer ainda mais dúvidas aos que dedicarem um tempo a ler o que trago aqui.
LEITINHO DA VACA TIRADO NA HORA
Vou passar o final de semana num hotel fazenda com minha família. De manhã caminhamos até o curral para ver tirarem leite das vaquinhas, onde um senhor bem apessoado, muito simpático, aperta o úbere da vaca e um jato quentinho de leite cai numa xícara, então ele me estende a mão oferecendo-a. Eu a rejeito gentilmente, mas vejo que ele ficou incomodado e ofendido, e solta a pérola: “Para vocês da cidade este leite realmente pode fazer mal, ele é muito forte, diferente daquele das caixinhas a que estão acostumados”. Pois bem, na realidade não existe esta coisa de leite “forte” que faz mal, o que existe é vaca com mamite, que é uma inflamação da glândula mamária, e que portanto, tem bactérias como Staphylococcus aureus e pode causar vômitos e diarreia.
Daí o sujeito toma o tal leite quentinho da vaca, passa o dia inteiro no banheiro do hotel fazenda, e fica grato, porque acredita que o distúrbio foi causado por tomar um leite que era forte demais para ele. Por outro lado, recentemente no Brasil fomos surpreendidos com diversos casos de adulteração e fraudes em leite. A mídia explorou bastante o tema e isto levou ao inconsciente popular a “verdade“ de que o leite da caixinha tem “química”.
Contudo, no leite industrializado adequadamente, como ocorre na maioria dos produtores, há um excelente controle de qualidade no recebimento para evitar adulterações, e depois um tratamento de esterilização UHT que consiste em submetê-lo por um tempo muito curto a uma temperatura bastante elevada, a fim de reduzir potenciais contaminantes microbiológicos a níveis adequados e seguros, alterando minimamente características organolépticas como sabor e odor. LINGUIÇA CASEIRA “CHIMIADA” NO PÃO Nada como uma linguicinha caseira, não é mesmo? Morei em regiões onde existe o hábito de “chimiar” ela no pão, ou seja, abri-la e passá-la no pão “in natura”, sem cozinhar previamente.
Que mal pode fazer, é caseiro, sem “química”! Pois bem, porcos podem ter Taenia solium e uma doença chamada cisticercose é causada pela larva deste verme nos tecidos, inclusive no cérebro, onde será chamada de neurocisticercose, e tem como sintomas convulsão, hidrocefalia, infarto cerebral e pseudo-tumores devido aos cistos gigantes que simulam um tumor ou abcesso cerebral. A América Latina tem sido apontada como área de prevalência elevada de neurocisticercose, que está relatada em 18 países latino-americanos, com uma estimativa de 350 mil pacientes.
O abate clandestino de suínos, sem inspeção e controle sanitário, é muito comum na maioria dos países da América Latina e Caribe. No Brasil, a cisticercose tem sido cada vez mais diagnosticada, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, tanto em serviços de neurologia e neurocirurgia quanto em estudos anatomopatológicos. A baixa ocorrência de cisticercose em algumas áreas do Brasil, como por exemplo nas regiões Norte e Nordeste, pode ser explicada pela falta de notificação ou porque o tratamento é realizado em grandes centros, como São Paulo, Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro, o que dificulta a identificação da procedência do local da infecção.
Pode ser também porque o Sul tem maior hábito de chimiar a linguiça crua no pão, especialmente entre descendentes de alemães e italianos, como heranças culturais. O fato é que pegar uma linguicinha caseira de onde não foram retiradas devidamente partes do porco que pudessem conter cisticercos e depois ingeri-la sem o devido tratamento térmico, como cozimento ou fritura, tem um risco elevado.
QUEIJO FURADINHO DA FEIRA
Minha esposa vai à feira, traz um queijo frescal e alegremente me oferece: “Olha que delícia, comprei um queijinho cheio de furinhos”. E eu gentilmente lhe respondo: “Então pode jogar fora, é forte sinal de estar contaminado”. Ela retruca: “Você adora estes queijos suíços com furinho, não sei por que não vai querer comer este que eu trouxe”. Esses furinhos são conhecidos como “olhaduras” e podem ser uma boa característica ou não. Os furinhos “do bem” normalmente são grandes e lisos, e estas olhaduras estão presentes essencialmente em queijos duros como o Gruyere ou Emmenthal conhecidos no Brasil por queijos suíços, ou nos queijos semiduros como o Prato, Gouda e Edam.
Nestes casos, o microrganismo responsável é, principalmente, o Propionibacterium shermanii, inofensivo à saúde e que possui características bem definidas de crescimento, podendo produzir grandes quantidades de gás, pois o substrato de sua atuação, o lactato de cálcio, se encontra em abundância no queijo. Entretanto, para que o processo se desenvolva, são necessárias condições bem específicas de controle de processo como rigorosas condições de higiene, teor de sal, oxigenação e temperaturas bem controladas. Por outro lado, em queijos artesanais brancos e macios como Minas Frescal e Coalho, feitos com leite não pasteurizado, o processo de produção de olhaduras se dá normalmente pela contaminação com coliformes fecais e estafilococos patogênicos, indicando um processo de higiene duvidosa. Nestes casos, os furinhos costumam ser redondinhos, numerosos e bem pequenos, exatamente como os do queijo que minha esposa trouxe, e portanto, o queijo pode fazer mal. O artigo Os desafios da cadeia do queijo Minas artesanal pode trazer informações valiosas para quem quiser explorar mais este tema, assim como o artigo Maturação do queijo pode reduzir patógenos.
MAIONESE ESPECIAL
Meu filho pede um lanhe no iFood, o lanche chega e junto vem um copinho de plástico com a “maioneses especial”! Eu pego o copinho e o jogo fora, e meu filho olha para mim com cara de desespero: “Pai, tá doido, é o melhor do lanche!”. Não são raros os surtos de intoxicação alimentar em festas e restaurantes cujas investigações encontram como causa-raiz a “maioneses caseira”, uma vez que ovos crus ou mal preparados são uma grande fonte de contaminação por Salmonelas que causam a salmonelose, uma infecção intestinal que geralmente dura de 4 a 7 dias, podendo causar diarreia severa, dores abdominais, calafrios, febre, náuseas, vômitos e mal-estar de 12 a 72 horas após a ingestão do alimento contaminado.
Além disso, nestas maioneses especiais há temperos adicionados que podem conter, por exemplo, esporos de Bacillus cereus, que podem causar também vômitos, diarreias e outros problemas gastrointestinais. Já na maionese industrializada os ovos foram tratados termicamente para eliminar esta contaminação e não há adição de ingredientes após o tratamento térmico. Sobre este tema, o leitor pode se aprofundar em Surto por Salmonella pelo consumo de ovos crus ou mal cozidos.
O VELHO FRANGO COM HORMÔNIO
Estou no mercado e pego um frango enorme para o almoço, uma senhora ao lado olha para mim e diz: “Estes frangos estão cada vez maiores de tanto hormônio que dão”. Eu retruco: “Senhora, isso é um mito, não dão hormônios para os frangos”. Ela olha para mim com olhar que mistura um ar severo com caridade: “Meu filho, todo mundo sabe que enchem os frangos de hormônio e é por isso que eles crescem tanto e tão rápido, até as meninas hoje em dia estão entrando na puberdade mais cedo por isso”. Eu desisto de continuar a conversa e levo embora meu frango. Nada contra quem gosta da velha galinha caipira, mas o fato concreto é que certamente em seu metabolismo natural de crescimento, não seria possível fornecer proteínas de baixo custo em abundância como ocorre com os frangos criados em granja.
A IN nº 17 de 2004 do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento proíbe a administração, por qualquer meio, na alimentação e produção de aves, de substâncias com efeitos tireostáticos, androgênicos, estrogênicos ou gestagênicos, bem como de substâncias ß-agonistas, com a finalidade de estimular o crescimento e a eficiência alimentar. Mas as empresas podem burlar a lei, pensará um leitor incrédulo no fato de que não há hormônio em frango! Na verdade não valeria o risco de ser pego dando hormônios em frango, porque se trata de produto extremamente analisado e monitorado, justamente por ser um importante produto brasileiro de exportação e qualquer eventual falha devido à presença de hormônios levaria à perda de milhões de dólares no mercado internacional.
Além disso, dar hormônios aos frangos não é necessário, os frangos atingem o ponto de abate com excelente conversão entre ração e ganho de peso sem usar este recurso. Mas então como um frango pode estar pronto para o abate em cerca de 40 dias? Justamente devido a algo de que devemos nos orgulhar: o avanço da zootecnia é o principal responsável pelo aumento de produtividade na avicultura de corte e pela grande evolução avícola brasileira decorrente de fatores como melhorias na infraestrutura, ambiência, nutrição, melhoramento genético, sanidade, uso de promotores de crescimento que não tem nada a ver com hormônios e o entendimento e uso adequado destes conhecimentos no manejo da produção. Sobre este tema, o blog já publicou os artigos Uso de Hormônios em Frangos e Será que carne de frango tem hormônio?.
MINHA LISTINHA DE CASEIROS
Num destes finais de semana subo com a família para a região serrana do Espírito Santo, paro numa lojinha de beira da estrada e pego um vidro de geleias, um pacote de macarrão e um de café. A moça que vende me olha e diz: “O senhor vai gostar, é tudo caseiro, fazemos bem aqui no sítio”. Minha esposa já acostumada comigo me olha e cochicha no meu ouvido: “Agora ela perde o cliente”. Mas ao contrário do que ela esperava, eu levo os produtos. Já no carro ela diz: “Ué, levou produtos caseiros? E os riscos?” Então lhe respondo: “A geleia de tamarindo tem baixo pH, baixa atividade de água e alta pressão osmótica, portanto, o risco microbiológico é inibido pelas próprias características do produto; o macarrão tem baixa umidade e baixa atividade de água, o máximo que pode ter é algum ovinho de coleóptero, vulgo caruncho, mas que é inócuo à saúde, e será devidamente cozido; já o café, amo ele assim fresquinho, recém moído, e também tem baixa umidade e é realmente muito seguro”.
O SELO ARTE
Todos estes “causos” estão relacionados a uma novidade. As Secretarias de Inovação, Desenvolvimento Rural e Irrigação (SDI) e da Defesa Agropecuária (SDA) estão trabalhando em conjunto com outros órgãos de governo e entidades na regulamentação de um Selo que será criado para identificar alimentos artesanais, já chamado Selo Arte, que irá identificar e autorizar a comercialização interestadual de alimentos de origem animal produzidos de forma artesanal.
A regulamentação do Selo atende demanda dos produtores rurais e poderá ser uma ferramenta importante na agregação de valor para produtos de origem, como já ocorre, por exemplo com alguns produtos europeus, como queijos, vinhos, etc. Espera-se um efeito positivo, que haja algum controle para garantir a inocuidade, sanidade, qualidade e identidade desses alimentos artesanais, e junto com o Selo Arte, é claro, virá também um decreto para regulamentar a Lei N° 13.680 de 2018 (ler mais em Alimentos artesanais: a regulamentação da lei 13.680/2018 e em Segurança de alimentos artesanais e a nova lei nº 13.680/2018), que trata da fiscalização de produtos de origem animal produzidos de forma artesanal. A regulamentação do Selo Arte pretende dar ao consumidor segurança de que o processo de produção está sendo realizado de forma artesanal, que respeita características e métodos tradicionais ou regionais próprios, mas também que atende às boas práticas agropecuárias e de fabricação que garantam a segurança sanitária.
Quem sabe com o Selo sendo efetivamente aplicado e garantindo o que esperamos em termos de segurança de alimentos, eu pare de perturbar tanto minha família quando eles compram alimentos artesanais. Quem quiser ler mais sobre o tema, indico o artigo Alimentos artesanais de origem animal – o que esperar? e também Alimentos: quando o artesanal não é legal.
Fonte: https://foodsafetybrazil.org/causos-sobre-alimentos-artesanais/